«Enfrentou resistências do PS e contribuiu para o fim da coligação com o CDS. Prestes a cair, Arnaut assinou um despacho secreto e pediu ajuda a um amigo maçom para garantir a criação do SNS.
20 de julho de 1978. António Arnaut está sozinho no seu gabinete, na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa. Percebera há muito que o seu lugar como ministro dos Assuntos Sociais estava por um fio. O acordo com o FMI, assinado meses antes, só viera precipitar as tensões entre socialistas e democratas-cristãos, que sustentavam o executivo de Mário Soares no Parlamento. Dali a semanas, talvez dias, o II Governo Constitucional cairia inevitavelmente, acreditava Arnaut. Decidiu agir: sem avisar os restantes ministros, sem avisar sequer o primeiro-ministro em funções, assinou naquela mesma tarde o despacho que ficaria conhecido como “Despacho Arnaut”. Tinha uma única certeza: garantindo por lei o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde, deixariam de existir condições políticas e sociais para recuar. Nascia assim o Serviço Nacional de Saúde.
“Foi uma decisão monumental. Apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho. Os escritores escrevem livros, os ministros escrevem no Diário da República. Assinei-o e fui para casa. Quando foi publicado e a malta começou a acorrer aos hospitais, deixou de haver hipótese de recuo”, recuperam os jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado na obra António Arnaut – Biografia.
A urgência era tal que António Arnaut não olhou a meios: depois de ter mantido o despacho em segredo, enviou-o naquela mesma tarde a um dos “amigos fraternos” — ou seja, um dos membro da Maçonaria — que trabalhava na Imprensa Nacional da Casa da Moeda. O objetivo era publicar o despacho o quanto antes e garantir a sua aplicação com efeitos imediatos. E assim foi: nove dias depois, tempo recorde para a época, o despacho era publicado em Diário da República, tornando o processo irreversível.
“Tinha a convicção clara de que o momento era aquele. Se o tempo entre a assinatura do despacho e a sua publicação em Diário da República fosse o normal para a época, ou seja, várias semanas, o mais certo seria ser revogado pelo novo Governo ou, até, nem chegar a ser publicado. Foi por isso que fiz tudo o que estava ao meu alcance para agilizar o processo, incluindo o pedido de ajuda a esse amigo fraterno”, citam os mesmos autores.
O despacho apanhou vários camaradas de partido de surpresa. A reação mais ostensiva, recorda Joaquim Vieira no livro Mário Soares – Uma Vida, pertenceu a Vítor Constâncio, o então ministro das Finanças. Ao autor, Arnaut recorda a conversa com o colega de Governo: “‘Ó Arnaut, então vais publicar uma coisa destas? Já fizeste as contas ao que vai custar?’”. O então ministro dos Assuntos Sociais terá então respondido: “‘As contas fazes tu, que és o ministro das Finanças’.” Segundo a versão do próprio, Mário Soares não terá lido o Diário da República, mas depois terá felicitado o seu ministro pela sua manobra pouco ortodoxa.
Os receios de Arnaut vieram a confirmar-se fundados. Cinco dias depois de ter assinado o despacho que lançaria as bases do SNS, o CDS desfez a coligação e provocou uma crise institucional. Mário Soares ainda tentaria salvar o Governo, mas Ramalho Eanes não acolheu as pretensões do socialista. Estava desfeito o II Governo Constitucional.
O ministro improvável e a luta de Arnaut contra o próprio partido
Apesar de ser reconhecido de forma praticamente unânime pelo seu papel na criação do SNS, o percurso político de António Arnaut poderia ter sido completamente diferente. De acordo com a versão dos factos apresentada pelo próprio a Joaquim Vieira (corroborada por Alfredo Barroso, sobrinho e um dos colaboradores mais próximos de Soares), o então primeiro-ministro escolhera Arnaut para ocupar a pasta da Justiça no seu Governo. O objetivo era imprimir uma verdadeira reforma na Polícia Judiciária e acabar com a corrupção que existia no seio daquela instituição. Um alegado veto presidencial de Ramalho Eanes — que o general sempre negou — mudaria tudo: Arnaut foi “chumbado” para a Justiça e Soares deu-lhe a pasta dos Assuntos Sociais.
Na obra Mário Soares — Uma Vida, Joaquim Vieira relata esse episódio, citando Arnaut em discurso direto: “Passados três dias, Mário Soares manda‐me chamar: ‘Tens de ir para os Assuntos Sociais’. Eu, que já estava arrependidíssimo de ter aceitado a Justiça, digo-lhe: ‘Então tinhas uma missão para me dar e já não precisas de mim para isso?’.’Não, arranja‐se outro, porque não tenho ninguém para os Assuntos Sociais. (…) ‘Se não precisas de mim para a Justiça, dispensa-me do governo’, disse‐lhe eu. ‘Se não aceitares, não formo governo. Tens um ministério onde podes mostrar que és socialista’. E aceitei ser ministro dos Assuntos Sociais, com a condição de criar o Serviço Nacional de Saúde [SNS]. Ele disse‐me, porventura sem ponderar o risco que ia assumir, dado que se tratava de um acordo parlamentar de incidência governamental: ‘Está bem, tu é que sabes’. Eu tinha uma ideia, é evidente, quanto a direitos sociais, de saúde não sabia. ‘Nunca digas que não sabes nada de saúde’, determinou o Mário Soares.”
O suposto veto de Ramalho Eanes terá sido determinante para Mário Soares. Mas não só. Alfredo Barroso sugeriu ao tio que escolhesse António Guterres para ministro dos Assuntos Sociais, mas o agora secretário-geral da ONU, próximo de Salgado Zenha, rival de Soares, rejeitou o convite. Arnaut surge como uma segunda escolha, mas carregada de simbolismo político.
“Para os Assuntos Sociais, eu tinha sugerido Guterres, que não aceitou, arranjando uma série de desculpas – mas era por causa de Zenha, que ficara fora do governo, e Guterres achava que Soares estava a montar um esquema para Zenha ficar isolado, o que era um perfeito disparate, porque Soares queria que ele se mantivesse presidente do grupo parlamentar. Então Soares, para lixar Eanes, mete Arnaut como ministro dos Assuntos Sociais, e é por isso que ele vem a ser o pai do SNS”, conta Alfredo Barroso a Joaquim Vieira.
Mesmo assim, António Arnaut chegaria ao governo convicto de que seria possível lançar as bases do SNS. As circunstâncias que o país atravessava eram dramáticas: no final da década 70, recordam os jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado, na biografia de Arnaut, a mortalidade infantil era superior a 30 por mil, a esperança média de vida era inferior aos 60 anos e 80% dos equipamentos e profissionais de saúde estavam centradas Lisboa, Porto e Coimbra.
Apesar da convicção generalizada de que era preciso fazer alguma coisa para democratizar o acesso à saúde, o caminho seria tudo menos fácil: o CDS, que conseguira três lugares ministeriais no Governo PS/CDS, era frontalmente contra o modelo definido por Arnaut e, mesmo entre os ministros socialistas, havia quem duvidasse dos méritos do plano gizado pelo ministro dos Assuntos Sociais.
Logo em fevereiro de 1978, poucos dias depois de assumir funções, António Arnaut aceitou reunir com Diogo Freitas do Amaral no Hotel Altis, em Lisboa, para discutirem os detalhes do futuro Serviço Nacional de Saúde. Nesse encontro, o então líder do CDS terá levantado algumas reservas em relação ao modelo e à sua implementação, sugerindo que os dois partidos se encontrassem a meio caminho. Arnaut, segundo o relato de Freitas do Amaral, não terá recuado um único centímetro e acenou com o fantasma comunista: “‘Não, não, senhor professor, está enganado. Este Governo não é uma coligação entre dois partidos, é sim um governo de base PS com personalidades do CDS. As grandes leis a aprovar no parlamento são as do PS; se o CDS concordar com elas, apoia; se não concordar, nós podemos votá-las com o PCP’.”
Os democratas-cristãos ficaram em “choque”, como revelaria Freitas do Amaral no seu próprio livro de memórias. Do lado socialista, ninguém queria hostilizar o parceiro de coligação. “‘[Pressionado pelo CDS], Mário Soares começou a fazer marcha atrás. O SNS era necessário porque as pessoas não tinham nada e uma vez doentes morriam à míngua. Disse-lhe que se fizéssemos isto ficaríamos na História, mas ele estava pressionado e quis colocar o SNS em «banho maria». Era primeiro-ministro. Não queria uma crise com o CDS’”, recuperam os jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado, citando António Arnaut.
A determinada altura, perante a hesitação de Soares, António Arnaut chegou mesmo a ameaçar bater com a porta. “‘Disse ao primeiro-ministro que se ele não estivesse de acordo com o nosso projeto de lei me iria embora. Bastava saber algumas horas antes para arrumar a mala e apanhar um dos muitos comboios para Coimbra’”. Acabaria por resistir no cargo.
Em abril de 1978, Arnaut levou o tema ao Conselho de Ministros. Por sentir que aquele seria um momento determinante, chegou a revelar mais tarde, tirou várias notas dessa reunião e guardou-as religiosamente. São quatro folhas manuscritas, hoje parte do espólio do Museu da Farmácia. Mais uma vez, a decisão veio a revelar-se acertada.
Nesse conselho de ministros, a maioria dos ministros concordou no essencial com os princípios enunciados por Arnaut, mas todos, ou quase todos, sugeriram cautela ou mais progressividade na aplicação do modelo. Os custos orçamentais eram um dos maiores obstáculos à aplicação do sistema universal de saúde, mas os vários interesses instalados na sociedade civil e as expectativas excessivas que resultariam do anúncio de um sistema de saúde gratuito e universal eram outras condicionantes.
Mário Soares, consciente do quão politicamente complexa era questão, colocaria as coisas nestes termos: “‘Devemos transformar este projeto num ponto de honra do Governo’”, mas ter “‘uma certa modéstia em relação aos objetivos’” e “prudência” quanto à gratuitidade dos serviços. Uma solução a meio caminho, que deveria começar de forma experimental e em projetos pilotos circunscritos a três ou quatro distritos, era o que propunha o primeiro-ministro.
Arnaut tomaria nota de todas as recomendações, mas o assunto não voltaria ao Conselho de ministros. O CDS, em parte também por causa do modelo proposto para o SNS, já tinha lançado os primeiros grãos na engrenagem do governo. Dali até à queda do executivo, seria uma questão de tempo. A 25 de julho de 1978, o CDS rompe unilateralmente o acordo com o PS. Cinco dias antes, Arnaut tinha assinado o despacho que lançava as bases do SNS. A 29 de julho, seria finalmente publicado em Diário da República. A 27 de agosto, o II Governo Constitucional era exonerado por Ramalho Eanes, apenas sete meses depois da tomada de posse. Mas a revolução na Saúde pensada por Arnaut já seguia imparável.» (Fonte: Observador)