“Biografia de António Arnaut, o homem que ficou para a a história como o pai do Serviço Social de Saúde, revela as movimentações nos dias que antecederam a criação de uma das maiores conquistas sociais da Revolução
O segundo governo de Mário Soares estava por dias com a bancarrota à espreita e o Fundo Monetário Internacional (FMI) a bater à porta. O acordo para a intervenção era rubricado a 20 de julho de 1978, mas outras movimentações decorriam em paralelo e em acentuado secretismo na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, que iriam marcar uma das maiores conquistas sociais. No seu gabinete o ministro dos Assuntos Sociais, António Arnaut, assinava, contra meio mundo, o despacho que criava o Serviço Nacional de Saúde (SNS), conseguindo que fosse publicado em Diário da República em apenas nove dias. As publicações tardavam semanas, mas Arnaut tinha um “amigo fraterno”, membro da maçonaria, na Imprensa Nacional Casa da Moeda que ajudou a acelerar o processo para um tempo recorde. Aí estava a lei que passava a permitir o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde.
As movimentações dos dias que antecederam a criação do SNS são contadas na primeira pessoa à boleia da biografia de António Arnaut escrita pelos jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado. “Foi uma decisão monumental. Apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho. Os escritores escrevem livros, os ministros escrevem no Diário da República. Assinei-o e fui para casa”, recorda, relatando que quando o “despacho foi publicado e a malta começou a acorrer aos hospitais, deixou de haver hipótese de recuo”.
O despacho foi mantido em tal secretismo pelo “pai” do SNS e hoje presidente honorário do PS que a sua publicação viria a apanhar de surpresa os próprios camaradas de partido. Arnaut mantém a convicção de que agiu no momento certo. “Se o tempo entre a assinatura do despacho e a sua publicação em Diário da República fosse o normal para a época, ou seja, várias semanas, o mais certo seria ser revogado pelo novo governo ou, até, nem chegar a ser publicado. Foi por isso que fiz tudo o que estava ao meu alcance para agilizar o processo, incluindo o pedido de ajuda a esse amigo fraterno”, justifica.
Arnaut fora iniciado maçon em 1974 e foi o primeiro governante do pós-25 de Abril a assumir publicamente pertencer à maçonaria quando era ministro dos Assuntos Sociais.
De resto, a criação do SNS tinha sido debatida numa reunião realizada no Grande Oriente Lusitano, com a presença de vários médicos maçons, na qual Arnaut pediu ajuda para concretizar aquela que foi a mais importante conquista social da Revolução, atribuindo a sua ousadia à iminente queda do governo.
O segundo executivo liderado por Mário Soares tinha definido outra estratégia para a criação do SNS, que apontava à sua implementação mas de forma gradual, recorrendo a experiências em três ou quatro distritos do Interior. “Se o governo não tem caído talvez hoje não tivéssemos um SNS como ele é, devido à pressão do CDS, às dificuldades orçamentais e financeiras, à crise. Estava inscrito no programa de governo, mas não havia dinheiro”, recorda.
Além dos camaradas de partido, pouco interessados em abrir clivagens com o CDS, na altura parceiro de coligação, Arnaut enfrentaria ainda a poderosa Ordem dos Médicos, à época liderada por Gentil Martins.
Datado de 20 de julho de 1978 o Despacho Arnaut determinava que todas as pessoas “não abrangidas por quaisquer esquemas de proteção na doença” passam a integrar o SNS, dispondo gratuitamente de consultas de clínica geral e de especialidades médicas, serviços de enfermagem, internamento hospitalar, assistência medicamentosa e acesso a exames complementares de diagnóstico e tratamentos especializados.
Nunca uma reforma tinha alcançado tanto impacto na vida dos portugueses e nas contas do Orçamento do Estado, conseguindo o “ministro acidental” impor a sua principal bandeira política. É que a criação do SNS constava do programa apresentado ao Parlamento e era um imperativo inscrito na Constituição da República Portuguesa, aprovada dois anos antes.” (Fonte: DN)
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